Tanto o trecho do poema "Cão sem plumas", II. Paisagem do Capibaribe, de João Cabral de Melo Neto, quanto as Liras de "Marília de Dirceu", de Tomás Antonio Gonzaga, constroem imagens a partir de elementos da natureza, porém os poemas foram escritos em tempo e contexto diferentes, denunciando e abordando questões pertinentes. Considerando tais aspectos, elabore uma analise comparativa entre as imagens poéticas construídas por João Cabral de Melo Neto e por Tomás Antonio Gonzaga.
II. Paisagem do Capibaribe
Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.
Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).
O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.
Ele sabia também
dos grandes galpões da beira dos cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.
E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.
Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.
Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).
Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.
Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.
Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.
Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).
(Trecho do poema "Cão sem plumas", de João Cabral de Melo Neto)
Para conhecer mais sobre a vida e a obra do poeta recifense acesse:
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LIRA XIII
Vês, Marília, um cordeiro
De flores enramado,
Como alegre corre
A ser sacrificado?
O Povo para o Templo já concorre;
A Pira sacrossanta já se acende;
O Ministro o fere, ele bala, e morre.
Vês agora o novilho,
A quem segura o laço,
No chão as mãos especa,
Nem quer mover um passo.
Não conhece que sai de um mau terreno;
Que o forte pulso, que a seguir o arrasta,
O conduz a viver num campo ameno.
Ignora o bruto como
Lhe dispomos a sorte;
Um vai forçado à vida,
Vai outro alegre à morte:
Nós temos, minha bela, igual demência;
Não sabemos os fins, com que nos move
A sábia, oculta Mão da Providência.
De Jacó ao bom filho
Os maus matar quiseram.
De conselho muraram.
Como escravo o venderam.
José não corre a ser um servo aflito;
Vai subindo os degraus, por onde chega
A ser um quase Deus no grande Egito.
Quem sabe o Destino
Hoje, ó Bela, me prende.
Só porque nisto de outros
Mais danos me defende?
Pode ainda raiar um claro dia.
Mas quer raie, quer não, ao Céu adoro;
E beijo a santa mão, que assim me guia.
(Lira XIII, do livro "Marília de Dirceu", de Tomás Antonio Gonzaga)
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